Paulo Pacheco

Na Cidade de Néon

Dezembro, 2021

O relógio assinalara a hora de saída do trabalho com a certeza mecânica da tecnologia fria. Uma breve descarga de espanto substituída pelo alívio pesado de mais um dia. O trabalho hipnotizava pelo seu ritmo repetitivo, acentuado pelo estrondo das horas lânguidas e jocosas no seu tormento. Uma após outra, eram o tédio e resignação que se cravavam na carne como presas de um predador metálico.

Os trabalhadores ergueram-se, cansados, com pouco entusiasmo para o resto do dia que ainda lhes esperava. Uma massa de corpos que se esqueciam, que rumorejavam queixumes ou apenas conversavam sobre nada, seguiam para a porta de saída—uma boca que regurgitava carne em direcção ao brilho néon da cidade.

Entre a onda amorfa de granjeadores, o Trabalhador 56 fugiu, certo em direcção à artéria principal da cidade seguindo por uma ruela longa, cortando os edifícios com o passo rápido do desespero. Os outros escapavam do seu cansaço para os transportes que os levariam a casa.

Rapidamente, o Trabalhador chegou à artéria-mãe, inundada de luz, de actividade, de distracções permanentes, de uma vida electrónica que se precipitava velozmente para um êxtase eléctrico último.

Caminhar nessa rua era nadar num oceano néon, bioluminescente como muitas criaturas marinhas o são. A matéria orgânica dos transeuntes banhava-se na luz e no seu zumbido eléctrico perene; milhares de corpos que bailavam entre publicidade, entre propaganda, entre anúncios com promessas cristalinas de fortuna e felicidade num mundo que já não era.

Onda após onda, os anúncios arrebatavam e moviam as gentes ao longo da rua, desde o alto dos edifícios até ao solo, um coração de luz e simbolismo desconhecido para vender. Em baixo, pessoas comiam e bebiam, compravam o que desconheciam precisar, calados, ensimesmados, um reflexo quase maquinal do néon que os abrilhantava.

O Trabalhador sorvia este mundo pelos seus olhos, cada estímulo cansava-o com o peso da vacuidade. Queria apenas o seu refúgio, um lugar para fantasmas longe do néon, longe da horda que, como um super-organismo, se alimentava da cidade e era a cidade. Precisava de encher não o estômago mas a alma, não o apartamento-cubículo onde vivia mas o poço que se escavava no coração. Cada passada aumentava em si o desejo de desaparecer; o mundo à sua volta parecia-lhe irreal, uma fantasia, uma cópia quase perfeita de uma sociedade, de gente que se crê viva e plena na sua realização pessoal.

Cortando-lhe a introspecção momentânea, um vendedor de rua aproximou-se, vendendo o seu produto com a destreza mecanizada de um discurso memorizado. Um sonho, 30 créditos. Vendia experiências oníricas, emoções e sensações artificiais; uma tentativa de fabricar esperança, motivação, um método para se sentirem humanos no útero estrépito da metrópole. Mas ele, de momento, não desejava mais do que sorver do silêncio daquele lugar que descobrira—um segredo numa cidade desnudada.

Dirigia-se para o seu bar favorito, um lugar onde poderia esquecer-se, onde o mundo tomasse uma liquidez amena e, na penumbra de um recanto, saber-se anónimo num silêncio ancestral, longe do ritmo energético da cidade, das gentes de corpos físicos mas mentes ausentes, de acções inalcançáveis pela fraqueza sensorial do momento.

Saindo da rua principal, virou para uma ruela encovada, gasta pelo lixo que se acumulava, silenciosa como poucos sítios o eram. Mais uns passos e chegou ao seu destino. Defronte da portada, do cartaz luminoso avariado, de cacos de vidro no chão molhado que reflectiam uma luz que agora parecia longínqua, sentiu o aroma daquele local: de memórias e vozes que não tinham o estrídulo eléctrico habitual; de risos e zangas sem os estímulos nano-tecnológicos que eram os pilares sobrepesados da sociedade; aromas de cansaço e de um passado que se esfumava entre colunas de fumo de tabaco acendido por fantasmas.

Naquele café antigo, sombras reinavam. Entrou e abraçou o calor opaco da sala. Ângulos de escuro, rectas sombrias que cortavam o velho que servia bebidas a uma clientela quase inexistente. Só o breve tilintar de copos; apenas o som dos líquidos espargidos no vidro—um baile frágil que dava lugar ao silêncio. Lá fora, para além da pequena barragem do beco selado pelo bar, um turbilhão de cores e sons. Mas ali tudo tinha a tonalidade do esquecimento, da recolecção, da penumbra de que há muito se tinham esquecido, daqueles instantes onde a realidade se liquefaz e perguntas intemporais se levantam no âmago do ser-se humano.

A noite aproximou-se, devorando o céu das suas cores violeta e laranja. Sentado, o Trabalhador bebia do seu copo; mais do que o licor que pedira, bebia a quietude, um alívio para a canseira de um cérebro biológico que se fundira com a velocidade vertiginosa da tecnologia. Tão cansado da monotonia de um trabalho que ainda existia apenas para manter a ilusão de um objectivo comum—máquinas poderiam substituí-lo e aos seus colegas de trabalho. Mas a cidade ainda precisava de corpos que a consumissem, que se ajoelhassem perante as suas ofertas prazenteiras cujo pecado eram lágrimas secas de arrependimento e lamentos reprimidos.

Levantou o copo vazio, mirou-o languidamente e viu a sua própria condição. Banhado no silêncio, começou a sentir a ressaca do luzente, dos sons, de todos os inúmeros estímulos que se calaram por um breve momento. Sabia que haveria de os odiar novamente mas, agora, necessitava de sorver a cidade e fundir-se com a sua batida maquinal. A sua alma desejava a tranquilidade mas o seu corpo já não poderia viver sem o alvoroço digital.

Saiu do café, parou, olhou-o uma última vez e apeou pela ruela. Um soco sonoro e luminoso atingiu-o quando pisou, novamente, a artéria principal. Uma explosão de cores e sons beijaram-lhe a face e corpo e não estava só. Era um mais naquela torrente orgânica e tecnológica que percorria as veias da cidade. Um breve olhar triste perante a memória da quietude antes de se esquecer no vício da distracção, numa emoção sintética qualquer que lhe fará olvidar a monotonia telegrafada do dia.

Agora, caminha para casa. O Sol põe-se sob o metal, betão e alcatrão da cidade; a última luz quente a beijar o néon frio da noite que desperta mais uma vez do suor diário. A luz fria, brilhante, uniforme, e angular veste os edifícios altos que nasceram da terra fértil―troncos negros erguendo-se em direcção a um céu pedinte de esperança e sonhos, protegidos por gárgulas e anjos desolados que já não escrevem os seus nomes no céu de beleza dicromática. Expulsos da abóbada celeste, procuram agora almas sonolentas no solo para encantar com promessas analógicas de plenitude. Amanhã, ele procurará aquele café novamente.

--<>--<>--<>--<>--<>--<>--<>--<>--

Return to Creative Writing